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Princípios e Valores

A relevância dos princípios e valores militares transcende a mera formalidade institucional, constituindo os pilares sobre os quais se erguem a identidade, a coesão e a eficácia de qualquer força armada. As Forças Armadas, por sua natureza singular, são instituições de Estado, fundamentadas em preceitos éticos e morais que devem perdurar independentemente de governos e conjunturas políticas. A compreensão da evolução desses valores é crucial para contextualizar o papel do Exército Brasileiro na sociedade e no Estado ao longo de sua história.

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- WILLIAM H. MCRAVEN

Fundamentos Constitucionais e Legais dos Princípios e Valores

A estrutura e o funcionamento do Exército Brasileiro são intrinsecamente moldados por um arcabouço legal e doutrinário que estabelece seus princípios e valores fundamentais. Esses fundamentos garantem a estabilidade e a direção da instituição, definindo sua missão e a conduta esperada de seus integrantes.

Hierarquia e Disciplina como Pilares Institucionais

A Hierarquia e a Disciplina são explicitamente reconhecidas como a base institucional das Forças Armadas, conforme estabelecido no Art. 14 da Lei nº 6.880/1980, o Estatuto dos Militares. Nesses preceitos, a autoridade e a responsabilidade aumentam progressivamente com o grau hierárquico. A hierarquia militar compreende a ordenação da autoridade em diferentes níveis, definida por postos ou graduações, e, dentro do mesmo posto ou graduação, pela antiguidade. A disciplina, por sua vez, é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar, coordenando seu funcionamento regular e harmônico, e se traduz no perfeito cumprimento do dever por parte de todos os seus componentes. A manutenção da disciplina e o respeito à hierarquia são considerados essenciais em todas as circunstâncias da vida militar, abrangendo militares da ativa, da reserva remunerada e reformados.

Historicamente, a obediência tem sido um princípio fundamental das Forças Armadas brasileiras. Constituições anteriores, como a de 1824 e a de 1891, já previam que a força armada era "essencialmente obediente", embora sempre qualificada por "dentro dos limites da lei". O Decreto-Lei nº 3.864-41, de 1941, reforçava essa obediência estrita, indicando que "a decisão final do chefe é de sua inteira responsabilidade e encerra qualquer discussão sobre o assunto". No entanto, o Regulamento Disciplinar do Exército (RDE), Decreto nº 90.608/1984, introduziu uma nuance importante ao permitir que o subordinado solicite esclarecimentos ou até mesmo a confirmação por escrito de uma ordem caso ela contrarie um preceito regulamentar. Essa permissão, formalizada em um regulamento disciplinar, representa uma evolução significativa. Não se trata apenas de uma compreensão implícita, mas de um direito codificado dentro da estrutura disciplinar. Essa mudança, particularmente perceptível em regulamentos pós-Regime Militar (1964-1985), reflete um esforço consciente para alinhar a disciplina militar mais estreitamente com o Estado de Direito e os princípios democráticos. Sugere-se um afastamento da obediência inquestionável em direção a um conceito de dever mais legalmente delimitado e eticamente informado, possivelmente como salvaguarda contra abusos de autoridade e como resposta às experiências de governo autoritário. Essa formalização indica uma maturação na relação civil-militar, onde o funcionamento interno das forças armadas está cada vez mais sujeito a normas legais e constitucionais mais amplas.

Defesa da Pátria e Garantia dos Poderes Constitucionais

O propósito primordial das Forças Armadas, conforme o Art. 142 da Constituição Federal de 1988, é a "Defesa da Pátria" e a "Garantia dos Poderes Constitucionais". A defesa da Pátria engloba a proteção do território, da soberania e dos interesses nacionais contra ameaças externas, sejam elas potenciais ou manifestas.
Além disso, as Forças Armadas podem atuar na "Garantia da Lei e da Ordem (GLO)", mas essa atuação é estritamente subsidiária, mitigada e em casos excepcionais, ocorrendo apenas após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, conforme o Art. 15 da Lei Complementar nº 97/1999. Esse caráter "nacional e permanente" das Forças Armadas tem sido reiterado desde a Constituição de 1891.
A redefinição do papel interno do Exército após o período autoritário é notável. A Constituição de 1891 atribuía às forças armadas a "manutenção das leis no interior" , uma formulação ampla e potencialmente aberta. Em contraste, a Constituição de 1988 estabelece a "Garantia da Lei e da Ordem (GLO)" de forma explicitamente "subsidiária, mitigada e em casos excepcionais". Essa mudança de uma "manutenção das leis" para uma "garantia da lei e da ordem" estritamente qualificada representa uma redefinição fundamental do papel da instituição na segurança interna. A inclusão das qualificações "subsidiária, mitigada e em casos excepcionais" é uma limitação legal crítica. Essa redefinição é uma resposta legal e doutrinária direta e deliberada ao extenso e, por vezes, controverso envolvimento militar na política doméstica e na repressão durante o regime militar de 1964-1985. Ela representa um esforço constitucional para reforçar o controle civil sobre as Forças Armadas e prevenir futuras intervenções militares excessivas nos assuntos civis. As restrições legais explícitas visam assegurar que o foco principal do Exército permaneça na defesa externa, e que seu papel interno seja estritamente limitado a situações de emergência sob autoridade civil, fortalecendo assim as instituições e os valores democráticos.

O Estatuto dos Militares (Lei nº 6.880/1980) e seus Preceitos Éticos

A Lei nº 6.880/1980, conhecida como Estatuto dos Militares, é um marco legal que codifica os princípios e valores que regem a conduta e a organização das Forças Armadas. Além da hierarquia e disciplina, o Estatuto detalha valores militares essenciais e preceitos de ética militar.

Os Valores Militares Essenciais (Art. 27) incluem:

Os Preceitos de Ética Militar (Art. 28) impõem uma conduta moral e profissional irrepreensível, exigindo que o militar:

Os Deveres Militares (Art. 31) emanam de vínculos racionais e morais que ligam o militar à Pátria e ao seu serviço, compreendendo essencialmente:

Outras Leis e Decretos Relevantes

Além do Estatuto dos Militares, outros documentos legais históricos e contemporâneos reforçam e detalham os princípios e valores do Exército.

O Decreto-Lei nº 3.864-41 (1941), por exemplo, detalha a disciplina como um "fator primordial do comando", que deve ser "forte, esclarecida e digna", inspirada pelo sentimento do dever, cooperação espontânea e consciência profissional. O documento enfatiza a importância do exemplo do chefe, a prontidão para o serviço, a responsabilidade funcional indivisível, a obediência às leis e ordens, e a subordinação rigorosa. Lista deveres fundamentais como o sacrifício pessoal, a prática de virtudes cívicas e militares, a dedicação profissional, a coragem, a iniciativa, o aperfeiçoamento, a dignificação de cargos, a lealdade, a atividade, a camaradagem, o zelo pelo material, a clareza e exequibilidade das ordens, e a justiça e retidão no tratamento dos subordinados. Aborda também a honra e reputação da classe, a discrição, a aceitação de fadigas e a urbanidade no tratamento de subordinados.

O Decreto-Lei nº 6.227 de 1944 (Código Penal Militar) instituiu o Código Penal Militar, definindo crimes militares e suas penas para manter a disciplina e a ordem dentro das Forças Armadas e proteger a segurança externa do país. Este código abrange uma vasta gama de crimes, incluindo aqueles contra a segurança externa do país, a autoridade e a subordinação militar, o serviço militar e o dever militar, a pessoa, o patrimônio, a administração militar e a justiça militar, além de crimes específicos em tempo de guerra. A existência deste código demonstra a gravidade legal da violação dos princípios e valores militares e a seriedade com que a conduta é tratada no âmbito castrense.

O Decreto nº 90.608/1984 (Regulamento Disciplinar do Exército - RDE) define transgressões disciplinares como qualquer violação dos preceitos de ética, dos deveres e das obrigações militares, distinguindo-as do crime militar. Este regulamento reflete valores como ética, deveres, hierarquia, disciplina, camaradagem, cortesia, civilidade, respeito, honra pessoal, pundonor militar e decoro da classe, bem como o cumprimento de ordens e a responsabilidade. A aplicação da punição, segundo o RDE, deve ser feita com justiça, serenidade e imparcialidade, visando o "benefício educativo ao punido e à coletividade". O Supremo Tribunal Federal (STF) validou as punições militares previstas no RDE, reforçando sua constitucionalidade e aplicabilidade.

Documento Ano de Publicação Principais Princípios/Valores Estabelecidos ou Reforçados Breve Descrição da Relevância
Constituição Federal de 1988 1988 Defesa da Pátria, Garantia dos Poderes Constitucionais, Garantia da Lei e da Ordem (GLO subsidiária), Hierarquia, Disciplina, Caráter Nacional e Permanente, Serviço Militar Obrigatório, Respeito ao Direito Internacional, Busca da Paz Base legal e constitucional do papel das Forças Armadas no Estado Democrático de Direito.
Lei nº 6.880/1980 (Estatuto dos Militares) 1980 Hierarquia, Disciplina, Patriotismo, Civismo, Fé na Missão, Espírito de Corpo, Amor à Profissão, Aprimoramento Técnico-Profissional, Conduta Moral e Profissional Irrepreensível, Probidade, Lealdade, Respeito à Dignidade Humana, Cumprimento de Deveres Codifica os direitos, deveres, prerrogativas e situações dos militares, estabelecendo os preceitos éticos e morais da classe.
Decreto-Lei nº 3.864-41 (Regulamento de Continências, Honras e Sinais de Respeito das Forças Armadas) 1941 Disciplina (fator primordial do comando), Exemplo do Chefe, Prontidão, Responsabilidade Funcional, Obediência, Subordinação, Sacrifício Pessoal, Virtudes Militares e Cívicas, Dedicação Profissional, Coragem, Iniciativa, Aperfeiçoamento, Dignificação de Cargos, Lealdade, Atividade, Camaradagem, Zelo pelo Material, Justiça e Retidão, Honra e Reputação da Classe, Discrição Detalha a conduta, deveres e responsabilidades militares, enfatizando a disciplina e o exemplo como pilares da instituição.
Decreto-Lei nº 6.227/1944 (Código Penal Militar) 1944 Disciplina, Ordem, Segurança Externa, Autoridade, Subordinação, Serviço Militar, Dever Militar, Integridade Patrimonial e Administrativa Define crimes militares e suas penas, estabelecendo as consequências legais para a violação grave dos deveres e da conduta militar.
Decreto nº 90.608/1984 (Regulamento Disciplinar do Exército - RDE) 1984 Ética, Deveres, Obrigações Militares, Hierarquia, Disciplina, Camaradagem, Cortesia, Civilidade, Respeito, Honra Pessoal, Pundonor Militar, Decoro da Classe, Cumprimento de Ordens, Responsabilidade Especifica as transgressões disciplinares e o processo de aplicação das sanções, visando a manutenção da disciplina e a formação educativa.

A Evolução Histórica dos Princípios e Valores

Os princípios e valores do Exército Brasileiro não são estáticos; eles evoluíram e foram reinterpretados ao longo das diferentes fases da história do país, adaptando-se a novos contextos políticos, sociais e estratégicos.

Período Colonial e Império (Séculos XVI-XIX)
  • Primeiras Organizações Militares e a Formação da Identidade Nacional

O início da organização militar formal no Brasil remonta à chegada de Tomé de Sousa em 1549, com 600 voluntários de Portugal, marcando o estabelecimento de uma estrutura militar mais formal. No século XVII, a necessidade de defesa do território levou à formação dos "terços" de brancos, pretos, pardos e índios, unidades táticas que demonstravam uma forma inicial de organização e coesão. A epopeia da guerra holandesa, com vitórias como as de Tabocas e Guararapes, destacou o "valor dos chefes" e das "célebres companhias de assalto", forjando um espírito de aguerrimento. A glória de Henrique Dias, à frente de seu terço de pretos, deu origem à tradição dos "henriques", regimentos compostos unicamente por negros que perduraram por cerca de dois séculos, simbolizando um nacionalismo incipiente e a participação de diversas etnias na defesa do território. No século XVIII, a criação das companhias dos Dragões Reais das Minas em Minas Gerais para guarnição e policiamento refletia a crescente necessidade de controle territorial e manutenção da ordem.

Durante o Brasil Reino (início do século XIX), a chegada da Corte Portuguesa em 1808 impulsionou a organização militar, com a criação de novas unidades como o 1º Regimento de Cavalaria do Exército e a Guarda Real do Príncipe. A instituição da Real Academia Militar por D. João VI em 1809 demonstrava um foco no desenvolvimento da artilharia e na formação de quadros. No Brasil Império, após a Proclamação da Independência em 1822, D. Pedro I buscou diferenciar os soldados brasileiros dos portugueses, criando o Batalhão do Imperador e a Imperial Guarda de Honra, com regalias para atrair voluntários e servir como guarda pessoal do monarca. O decreto de 1º de dezembro de 1824 é considerado a primeira organização militar de valor no país, estabelecendo a coesão do Exército.

Os valores inferidos desse período incluem um forte Nacionalismo e Patriotismo, manifestado na defesa do território e na busca por uma identidade militar brasileira distinta. A formação de diferentes terços e a organização militar indicam a valorização da Coesão e Unidade. A descrição de batalhas e campanhas, com menção a tropas "aguerridas e disciplinadas", aponta para a importância da Disciplina e Aguerrimento.

  • A Lei de Promoções de 1850: Meritocracia, Instrução e Profissionalização

A Lei de Promoções do Exército Brasileiro de 1850 é considerada a primeira tentativa significativa de profissionalizar o corpo de oficiais no século XIX. Antes dela, as promoções eram frequentemente influenciadas por tradições aristocráticas, relações pessoais e de parentesco. A lei buscou romper com essa tradição, estabelecendo critérios mais objetivos para a ascensão na carreira militar.
Ela determinou que o acesso aos postos de oficial seria gradual e sucessivo. As promoções para tenentes, primeiros-tenentes e capitães seriam por antiguidade, enquanto majores, tenentes-coronéis e coronéis seriam promovidos metade por antiguidade e metade por merecimento. Os postos de oficiais generais seriam conferidos exclusivamente por merecimento. Isso indicava uma valorização do desempenho e da qualificação individual em detrimento da origem social. A lei também tornou obrigatória a passagem pela Escola Militar para oficiais das armas de engenharia, artilharia e estado-maior, e aqueles que não concluíssem o nível superior de sua arma seriam transferidos para a infantaria ou cavalaria. Em caso de empate, o diploma da Academia Militar seria o critério de desempate, demonstrando um forte incentivo à Instrução e Formação Militar. A lei também padronizou a carreira com idade mínima para ingresso no oficialato e tempo mínimo de permanência em cada patente, visando uma estrutura de carreira mais uniforme e previsível.
Os valores propagados por esta lei foram a Profissionalização, a Meritocracia, a Instrução e Formação Militar, a Antiguidade (como critério de progressão), a Padronização da Carreira, a Modernização e Eficiência do Exército, e um maior Controle e Vigilância do Estado sobre a instituição.

República Velha (1889-1930) e Era Vargas (1930-1945)
  • Desafios e Propostas de Modernização na República Velha (Revista "A Defesa Nacional")

A revista "A Defesa Nacional" (ADN), fundada em setembro de 1913 por jovens militares, emergiu como um "órgão de combate e um instrumento de trabalho" com o objetivo de incutir no Exército Brasileiro uma cultura profissional alinhada às necessidades da guerra moderna. Muitos de seus redatores, após estágios em corpos de tropa alemães, constataram a defasagem da instituição no Brasil e buscaram na revista um meio de promover a renovação.

A ADN diagnosticou um cenário de "anarquia" no Exército após a Revolução de 1930, com um relatório da Inspetoria do 2º Grupo de Regiões Militares (1930) apontando deficiências graves: armamento velho e insuficiente, serviço militar ilusório, justiça precária, hierarquia inexpressiva, instrução livresca, aquartelamento medíocre e aparelhamento material quase nulo. O relatório descrevia o Exército como um "conglomerado de homens de cultura variável", vivendo em uma "pseudo-hierarquia".

Diante desse quadro, a ADN propôs reformas abrangentes, incluindo a organização e hierarquização dos quadros, um regime de promoções lógico e honesto (criticando a lei de 1891, que considerava aspectos subjetivos), uma lei de movimento de quadros para evitar injustiças e organizar a carreira, e a reorganização do alto comando, sugerindo a criação de um Ministério da Defesa. A revista também clamava por dotação imediata de recursos e o fortalecimento do ensino militar, inclusive com a contratação de missões estrangeiras de instrução, como a Missão Militar Francesa, presente desde 1921.

Os valores propagados pela ADN eram o Profissionalismo, a Competência e Mérito, a Unidade e Coesão e um "Espírito Novo" de energia e tenacidade para a instituição.

  • O Código Penal Militar de 1944 e o Decreto-Lei nº 3.864-41: Conduta e Disciplina

O período da Era Vargas foi marcado pela consolidação de um arcabouço legal que visava fortalecer a disciplina e a conduta militar. O Decreto-Lei nº 3.864-41 (1941) detalhou a disciplina como um "fator primordial do comando", que deveria ser "forte, esclarecida e digna". Este decreto enfatizava o exemplo do chefe, a prontidão para a missão, a responsabilidade funcional indivisível, a obediência às leis e ordens, e a subordinação rigorosa. Ele listava deveres fundamentais como o sacrifício pessoal, a prática de virtudes militares e cívicas, a dedicação profissional, a coragem, a iniciativa, o aperfeiçoamento contínuo, a dignificação dos cargos, a lealdade, a atividade, a camaradagem, o zelo pelo material, a clareza das ordens e a justiça no tratamento dos subordinados.

Complementarmente, o Decreto-Lei nº 6.227 de 1944 instituiu o Código Penal Militar, que tipificava crimes militares e suas respectivas penas para manter a disciplina e a ordem dentro das Forças Armadas. Este código abrangia crimes contra a segurança externa do país, a autoridade e a subordinação militar, o serviço militar e o dever militar, a pessoa, o patrimônio, a administração militar e a justiça militar, além de crimes específicos em tempo de guerra. A existência e a abrangência desses documentos legais reforçaram valores como Disciplina, Responsabilidade, Integridade, Lealdade, Sacrifício, Cumprimento do Dever e Justiça, com sanções claras para as violações.

  • Continuidades e Rupturas na Era Vargas: Trabalhismo vs. Liberalismo

A relação entre a Era Vargas e o Regime Militar de 1964 é complexa, com o artigo analisado apontando que o Regime Militar representou uma ruptura significativa com as políticas varguistas, sendo fundamentalmente anti-trabalhista e liberal. Durante o Regime Militar, a questão operária passou a ser tratada como tema de segurança nacional, resultando em confronto com as classes proletárias e a destruição da autonomia sindical. Houve uma clara abertura ao capital internacional e uma forte influência de economistas liberais, como Otávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos, que se opunham ao protecionismo e ao nacional-desenvolvimentismo varguista.

A instrumentalização de valores para justificar a intervenção política e econômica é um aspecto crucial desse período. O Regime Militar, ao adotar uma postura anti-trabalhista e liberal, redefiniu o que constituía uma "ameaça", tratando a "questão operária como tema de segurança nacional". Essa redefinição alinha-se com a doutrina francesa da "guerre révolutionnaire" , que forneceu uma estrutura para identificar um inimigo interno, "infinitamente pequena", e justificou um "projeto de intervenção militar na sociedade". A ampla definição do inimigo, que incluía nacionalistas, católicos radicais e comunistas , permitiu que grupos como sindicatos fossem alvo de repressão. Assim, a instituição militar, influenciada por doutrinas externas, expandiu seu mandato percebido para além da defesa nacional tradicional, passando a incluir a manutenção de uma ordem socioeconômica e política específica. Valores como "segurança nacional" e "ordem" foram utilizados para justificar políticas que eram inerentemente políticas e econômicas, como a repressão ao trabalho e a abertura ao capital estrangeiro. Isso demonstra como os valores militares, embora aparentemente constantes (como a "defesa da pátria"), podem ser reinterpretados e expandidos em seu escopo para justificar a intervenção política e a supressão da dissidência interna, especialmente quando estruturas ideológicas externas fornecem uma narrativa convincente de ameaça. Tal processo destaca o perigo de uma definição excessivamente ampla de "segurança nacional" e seu potencial para erodir as normas e os valores democráticos.

Regime Militar (1964-1985)
  • A Influência da Doutrina Francesa da "Guerre Révolutionnaire"

A doutrina francesa da "guerre révolutionnaire" exerceu uma profunda influência sobre os valores militares brasileiros nos anos 1960, chegando ao Brasil em 1959 por meio de uma conferência na Escola Superior de Guerra (ESG). Essa doutrina, desenvolvida no contexto da Guerra da Argélia e focada na derrota do movimento marxista-leninista, marcou a visão de mundo de uma geração de oficiais, especialmente do Exército. Ela adaptou a visão de guerra para um "novo tipo de guerra: a guerra infinitamente pequena, a guerra insurrecional, a guerra revolucionária," que parecia estar "aqui dentro". No centro dessa doutrina estava a ideia de "guerra psicológica", vista como fundamental para atuar sobre as ideias da população do país-alvo.

  • A Doutrina da Segurança Nacional e a Definição do Inimigo Interno

A doutrina francesa trazia subjacente um "projeto de intervenção militar na sociedade," implicando que, se a sociedade democrática fosse incapaz de fornecer o apoio necessário ao Exército, seria preciso "mudar a sociedade, não o Exército". Essa doutrina ofereceu uma "definição flexível e funcional do inimigo," permitindo que o Exército brasileiro justificasse o combate a nacionalistas, católicos radicais e comunistas. A disseminação institucional dessa doutrina ocorreu através de publicações e documentos como o FA-E-01/61, que consolidou as definições de guerra insurrecional e revolucionária.

A reinterpretação de "Patriotismo" e "Defesa da Pátria" para legitimar a intervenção interna é um ponto crítico. A doutrina da "guerre révolutionnaire" levou à definição do "inimigo" de forma ampla, incluindo nacionalistas, católicos e comunistas, justificando assim a intervenção militar na sociedade para combater uma ameaça interna percebida. Tradicionalmente, a "Defesa da Pátria" implica proteção contra ameaças externas. No entanto, sob a influência da doutrina francesa, o conceito foi expandido para incluir a "subversão" interna. Isso significou que "patriotismo" e "defesa da pátria" foram reinterpretados como a defesa da nação não apenas de exércitos estrangeiros, mas também de desvios ideológicos internos ou movimentos sociais considerados "revolucionários". Essa reinterpretação forneceu a justificativa ideológica e doutrinária para a intervenção política direta dos militares, o golpe de 1964 e o subsequente regime autoritário. Ao enquadrar a oposição política interna como uma ameaça existencial à "Pátria", os militares puderam assumir um papel tutelar, sobrepondo-se aos processos democráticos e às liberdades civis. Isso demonstra como os valores militares centrais, se não forem claramente delimitados por princípios constitucionais e democráticos, podem ser manipulados para servir a fins políticos, levando a uma ruptura significativa nas relações civil-militares e a um período de governo autoritário.

  • Impacto na Relação Civil-Militar e nos Valores Institucionais

A doutrina francesa permaneceu como ponto de referência nos primeiros anos após o golpe de 1964, justificando a repressão à luta armada de esquerda. Embora promulgada durante o regime, a Lei nº 6.880/1980 (Estatuto dos Militares) estabeleceu valores que seriam reafirmados no processo de redemocratização, servindo como um elo entre o período autoritário e a transição democrática.

Pós-Redemocratização e o Exército Contemporâneo
  • Reafirmação dos Princípios Constitucionais

Com a redemocratização, a Constituição Federal de 1988 reafirmou o papel das Forças Armadas na "Defesa da Pátria", na "Garantia dos Poderes Constitucionais" e, de forma crucial, na "Garantia da Lei e da Ordem (GLO)" de maneira subsidiária e excepcional. O Estatuto dos Militares (Lei nº 6.880/1980) continuou a ser a base legal para os valores e preceitos éticos, demonstrando uma continuidade na formalização dos padrões de conduta.

  • Desafios da "Modernidade Líquida" e a Manutenção dos Valores Militares

O Exército contemporâneo enfrenta os desafios impostos pela "modernidade líquida", conceito de Zygmunt Bauman que descreve um mundo globalizado, interconectado, individualizado e volátil, onde a fluidez e a volatilidade desordenam todas as dimensões da vida social. Essa realidade contrasta com a "modernidade sólida" militar, obcecada pela ordem, disciplina e coletivismo.

A fragilidade dos valores tradicionais em um ambiente de fluidez social e informacional é um desafio contemporâneo notável. O artigo descreve vividamente a "modernidade líquida" e suas ameaças diretas aos valores militares "sólidos": desinformação, relativização, ênfase nos direitos em detrimento dos deveres e a cultura do "politicamente correto". Historicamente, os valores militares foram incutidos por meio de estruturas rígidas, hierarquias claras e um ambiente de informação relativamente fechado, como evidenciado nos regulamentos disciplinares. A natureza "sólida" da instituição militar foi construída sobre essa base. A "liquefação" dos valores na sociedade, conforme descrito, mina diretamente os mecanismos tradicionais de transmissão e manutenção de valores dentro das forças armadas. A desinformação corrói a confiança e a coesão, a relativização desafia princípios absolutos como dever e honra, e a ênfase nos direitos individuais pode entrar em conflito com o sacrifício coletivo inerente ao serviço militar. Isso sugere que o Exército contemporâneo enfrenta um desafio sem precedentes na preservação de sua identidade central e eficácia. Os métodos tradicionais de inculcar valores podem ser menos eficazes em um mundo fluido e interconectado. Essa situação pode levar a divisões geracionais internas, dificuldades de recrutamento e retenção, e uma potencial erosão da confiança pública se a instituição for percebida como desalinhada com os valores sociais ou incapaz de combater ameaças modernas à sua coesão interna. Isso exige uma abordagem proativa e adaptativa para a liderança ética e a educação de valores.

Os desafios éticos militares na modernidade líquida incluem: a propagação de desinformação e fake news (que podem abalar a coesão, a saúde mental e a credibilidade do Exército), o excesso de relativização (levando à perda de clareza nos princípios éticos), a cultura de "deveres nanicos em terra de direitos" (subvalorizando o sacrifício do serviço militar), e o "politicamente correto" (percebido como censura e ataque à liberdade de expressão). Nesse cenário, a liderança militar é crucial para induzir a cultura e promover crenças e valores, adaptando-se à modernidade líquida.

Os valores em discussão no contexto contemporâneo incluem Patriotismo, Civismo, Fé na missão do Exército, Amor à profissão, Espírito de corpo, Aprimoramento técnico-profissional, Autoaperfeiçoamento, Idealismo, Dever, Lealdade, Probidade e Coragem.

  • Diretrizes Atuais de Ética e Conduta

A deontologia militar, ou código de ética, continua sendo a convergência desses valores. O Regulamento Disciplinar do Exército (Decreto nº 90.608/1984) permanece como o instrumento para a aplicação da disciplina, com suas punições validadas pelo Supremo Tribunal Federal.

Período Histórico Principais Princípios/Valores Contexto/Ênfase
Colonial e Império (Séculos XVI-XIX) Nacionalismo, Patriotismo, Coesão, Unidade, Disciplina, Aguerrimento, Profissionalização, Meritocracia, Instrução, Antiguidade, Padronização, Modernização, Eficiência, Controle do Estado Defesa territorial e formação da identidade nacional; transição de privilégios aristocráticos para profissionalização e critérios objetivos de carreira.
República Velha (1889-1930) e Era Vargas (1930-1945) Profissionalismo, Competência, Mérito, Unidade, Coesão, "Espírito Novo", Disciplina, Responsabilidade, Integridade, Lealdade, Sacrifício, Cumprimento do Dever, Justiça Diagnóstico de deficiências e busca por modernização e profissionalização; consolidação de arcabouço legal para disciplina e conduta; instrumentalização de valores para justificar intervenção política e econômica.
Regime Militar (1964-1985) Segurança Nacional, Ordem, Hierarquia, Disciplina, Patriotismo (reinterpretado), Combate à Subversão Interna, Intervenção na Sociedade Profunda influência da doutrina da "guerre révolutionnaire" e da Doutrina de Segurança Nacional; redefinição do inimigo interno e justificação da intervenção política.
Pós-Redemocratização e Contemporâneo Defesa da Pátria, Garantia dos Poderes Constitucionais, GLO (subsidiária), Hierarquia, Disciplina, Patriotismo, Civismo, Fé na Missão, Espírito de Corpo, Amor à Profissão, Aprimoramento Técnico-Profissional, Autoaperfeiçoamento, Idealismo, Dever, Probidade, Coragem Reafirmação dos princípios constitucionais e limites à atuação interna; enfrentamento dos desafios da "modernidade líquida" (desinformação, relativização, cultura de direitos) na manutenção da coesão e credibilidade.

Mecanismos de Instrução e Aplicação dos Princípios e Valores

A transmissão e a aplicação dos princípios e valores militares são garantidas por uma série de mecanismos institucionais que buscam moldar a conduta e o caráter dos integrantes do Exército Brasileiro.

O Papel das Escolas de Formação e Academias Militares

As escolas de formação e academias militares desempenham um papel central na instrução e inculcação dos valores. Já na Lei de Promoções de 1850, a passagem pela Escola Militar era obrigatória para oficiais de certas armas, evidenciando a importância da formação formal para a profissionalização. Durante a República Velha, o fortalecimento do ensino militar e a contratação de missões estrangeiras de instrução foram propostas essenciais para modernizar o Exército.

O Decreto-Lei nº 3.864-41 (1941) enfatiza que a instrução militar visa o "aperfeiçoamento gradativo da instrução física, moral, cívica e intelectual dos militares". O documento destaca que "o instrutor deve ser essencialmente um educador", e que o valor das instituições militares repousa na base moral. Para a admissão em escolas de formação de oficiais, exige-se idoneidade moral e que as condições de ambiente social e doméstico do candidato não colidam com os deveres militares ou com um "perfeito sentimento patriótico". Isso demonstra que a formação de valores começa antes mesmo do ingresso na carreira, com a seleção de indivíduos com um alinhamento prévio aos preceitos institucionais.

Regulamentos Disciplinares e Códigos de Conduta

Os regulamentos disciplinares e códigos de conduta são instrumentos cruciais para a aplicação prática dos princípios e valores. O Decreto-Lei nº 3.864-41 (1941) detalha a disciplina como um fator primordial do comando, exigindo obediência às leis e ordens, e estabelecendo deveres fundamentais. Ele também aborda a violação do dever militar, classificando-a como transgressão disciplinar ou crime militar, dependendo da gravidade.

O Decreto-Lei nº 6.227 de 1944 (Código Penal Militar) define os crimes militares, estabelecendo as consequências legais para a violação grave dos deveres e da conduta. Já o Decreto nº 90.608/1984 (Regulamento Disciplinar do Exército - RDE) especifica as transgressões disciplinares como violações dos preceitos de ética, deveres e obrigações militares. A aplicação da punição, segundo o RDE, deve ser feita com justiça, serenidade e imparcialidade, visando o "benefício educativo ao punido e à coletividade". Isso sublinha que o sistema disciplinar não busca apenas punir, mas também reforçar os valores e a integridade da instituição.

A Formação Moral, Cívica e Profissional do Militar

A formação do militar é um processo contínuo que abrange aspectos morais, cívicos e profissionais. O Estatuto dos Militares (Lei nº 6.880/1980) lista Patriotismo, Civismo e Culto das Tradições Históricas, Fé na Missão Elevada, Espírito de Corpo, Amor à Profissão das Armas e Aprimoramento Técnico-Profissional como valores essenciais.

O Decreto-Lei nº 3.864-41 (1941) enfatiza que nenhum conscrito ou voluntário deve deixar o serviço ativo sem saber ler, escrever e contar, e sem noções indispensáveis sobre o Brasil e seus deveres para com a Pátria. Além disso, o militar tem o dever de cuidar de sua instrução e adestramento, e cada chefe deve instruir e adestrar seus subordinados, zelando pelo aperfeiçoamento de sua formação moral, cívica, intelectual e profissional. A promoção na carreira militar, por sua vez, opera-se pela seleção de "valores físicos, intelectuais, profissionais e morais", com a aptidão para o Comando sendo o motivo principal do acesso, exigindo idoneidade moral comprovada.

Exemplos Históricos e Casos de Aplicação/Dilemas Éticos

A história do Exército Brasileiro é rica em exemplos de aplicação de princípios e valores, bem como de dilemas éticos que exigiram a reinterpretação ou a adaptação da doutrina. A doutrina francesa da "guerre révolutionnaire" e a "guerra psicológica", por exemplo, moldaram a percepção de ameaças e justificaram a intervenção militar na sociedade, gerando dilemas éticos sobre os limites da atuação militar e a definição do "inimigo".

No cenário contemporâneo, o debate sobre a "responsabilidade de proteger" (R2P) da ONU, que permite intervenção internacional por motivos como direitos humanos ou questões ambientais, levanta questões sobre os limites da soberania nacional e a proteção dos interesses do país, indicando um valor de cautela e proteção dos interesses nacionais por parte das Forças Armadas.

A persistência de dilemas éticos na adaptação da doutrina e missão é um aspecto fundamental. Os registros históricos e contemporâneos demonstram que o Exército constantemente enfrenta situações em que seus valores e missão devem se adaptar a novos contextos, o que frequentemente leva a dilemas éticos. Seja na definição do "inimigo" interno, como ocorreu com a doutrina da "guerre révolutionnaire" que justificou a intervenção militar na sociedade , ou na navegação de intervenções internacionais e a proteção dos interesses nacionais no debate sobre a "responsabilidade de proteger" , ou ainda ao lidar com as mudanças sociais e informacionais da "modernidade líquida" que impactam a coesão interna , a instituição é continuamente desafiada a interpretar e aplicar seus valores em cenários complexos. Isso sugere que a ética militar não é um conjunto estático de regras, mas um campo dinâmico de interpretação e adaptação contínuas. A persistência desses dilemas implica que a instrução de princípios e valores deve ir além da memorização de regulamentos; ela deve fomentar o pensamento crítico, o raciocínio moral e a adaptabilidade para navegar situações ambíguas, sempre mantendo o ethos central da instituição. Isso ressalta a importância da educação ética contínua e do desenvolvimento da liderança dentro do Exército.